2.
Então aqui uma primeira memória dura na hora, agora bem molinha que aconteceu em Mostar, na Bósnia. A gente tinha ido pra lá pra ir ao encontro da guerra, das marcas da violência e para achar e conhecer uns ciganos, a Julia tinha notícias que eram muitos. Calor real, muito, muito, muito. Chegamos e já percebemos que a mulher com quem estava combinada a hospedagem queria nos vender gato por lebre, já rolou uma pequena briga porque ela não se conformava de ter reservado pra gente e a gente de repente não querer ficar, e a gente dizendo que o quarto reservado era outro e tal. Bom, a cidade linda nos acalmou. E comida boa, mesquitas e ruazinhas de pedra. Mas os prédios e portões e até o asfalto, varados de tiros. Buracos. Muitas casas condenadas, destruidíssimas. As praças (muitas, né Julia?) eram cemitérios, com túmulos com a mesma data, mesmo ano 92,93 ?? Mas os bancos e o coreto e a geometria toda da praça ali e a sua função inclusive, de praça, também mantida: pessoas passeando, sentadas nos bancos , conversando, rindo e tudo mais, diante dos túmulos.
Bom, e aí então, instaladas num hotel mais território neutro e menos casa da louca-mulher, começamos nossas “investigações”. Fomos, quando chegou a noite, tomar um café (aqueles inesquecíveis cafés turcos servidos em praticamente baldes ou naquelas xícarazinhas e bulezinhos tão especiais) com um cigano jovem nas margens daquele deslumbrante rio azul-esmeralda Neretva ( a Julia vai me corrigindo e acrescentando, certo?). O moço era nosso “jacaré”, nossa ponte com os ciganos (os muitos). Combinamos encontro para o dia seguinte. Ele nos levaria, nos faria felizes com a missão realizada redondinha. Nada. No dia seguinte, quente , quente, quente, com câmera, figurinos e outras coisinhas fomos literalmente para a estrada. Quilômetros . O cara nos deu o cano e sumiu, resolvemos ir por conta própria. Chegou num ponto que as duas estavam BEM cansadas e torradas, mas a idéia da empreitada ter sido em vão, o ter que dormir com isso também era doloroso. Não achamos nada.
Paramos pra ter o alívio da coca com gelo num meio que posto meio que lanchonete da estrada. As duas meio que sem se falar, a coisa toda dentro de mim se transformando numa raiva pela Julia estar insistindo em continuar na busca perdida ao mesmo tempo sem querer assumir o meu “já deu”… sol quentíssimo de verdade. Andamos mais um pouco, aí já com a hostilidade sem se disfarçar, eu andando longe dela, ela meio que sem defesa, aceitando. Não sei no que ela estava pensando . No inverno, um tempo antes a gente teve uma volta para um hotel bem na ranzinzisse também, não tanto quanto essa que agora narro. Foi de frio. As duas congelando depois de uma tarde linda de imagens-quadros que a gente adorou (o perfil da moeda, o trompete com sanguinho na mão, coisinhas que foram devagar dando substância aos nossos corações), caminhando lado a lado mas mudas. Chegamos no quarto, nossos dedos dos pés tinham colado uns nos outros, colamos no aquecedor e reatamos a amizade. Enfim, voltando à saga do verão, depois de um tempo ela mesma desistiu de achar o “mar de ciganos” e resolvemos voltar. Frustração. Depois de mais algumas horas retornando, as duas indignadas com o nenhum resultado, resolvemos fazer a qualquer custo, em qualquer lugar, de qualquer jeito, a cena da guerra, a cena da mina no chão (toda essa história mais literal e de denúcia da guerra acabou virando nas mãos sensatas da Julia um curta muito amado chamado Pedra Bruta).
Nós estávamos em guerra. Não sei se a gente sacou isso na hora, mas o fato era que naquele momento, eu estava em guerra então era vida ou morte, era possível me ralar nas pedras, algum sangue tinha que rolar. E olha que depois de uns dias, a gente de novo em busca da guerra, da cena do colar estourando, do lançamento de granadas invisíveis no meio de umas pedras cortantes, e a Julia fatiou a ponta do dedão do pé. Sangue. As coisas têm preço. E isso é bom. As cenas ficaram muito lindas, a maioria não vai entrar no filme, mas ajudaram a gente a ir entendendo a poesia que a gente queria construir, o espírito dela.
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com essa escrita, dá pra ouvir e imaginar os gestos! uma delícia. que saudades de ouvir georgette contar causos.
ResponderExcluirSinto um orgulho intenso de ter contato direto com esses personagens que encenam a vida real.Luciene
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